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sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

O SOBREVIVENTE

 Dos quatro sobreviventes da explosão ocorrida no terminal estadual de gás, cuja fotografia, naquele instante, eu mantinha suspensa diante dos meus olhos, um deles se encontrava morto. Aliás, antes mesmo de ter sido fotografado.
E era, convenhamos, por demais estranho e constrangedor avistá-lo ali, em preto e branco, empertigado, ladeando os outros três sobreviventes, deixando a mostra um sorriso irônico e ligeiramente despudorado. Sequer olhava-me de soslaio, preferindo enfrentar-me com seus olhos negros interrogativos por trás dos óculos redondos de grossas lentes, que garboso, se via obrigado a usar. Aparecia vestindo o mesmo sobretudo cinza escuro de golas largas, que trajava quando o encontraram sem vida por entre os escombros do sinistro.
Desde o começo, quando das primeiras listas com os nomes das vítimas fatais, ele já figurava. A família fizera o reconhecimento de seu corpo no necrotério e chorara desesperada sobre o cadáver chamuscado. Agora, ele teimava em voltar, incluso em todas as fotografias tiradas dos três únicos sobreviventes. Chegara, inclusive, a aparecer na primeira página de um jornal vespertino de grande circulação, numa fotografia, entremetido àqueles três que escaparam do desastre, em cujo rodapé anunciava o que as páginas internas esmiuçavam.
E embora as notícias corroborassem a sua morte, enveredando em comentários sobre o padecimento da sua enlutada família, renitente, ele insistia em se mostrar com vida, desprezando a companhia dos mortos que, assim como ele – e como cabia ser –, já haviam sido sepultados.
Somente seis dias depois daquela infausta tarde em que me trouxeram a notícia da sua morte, é que a imagem de meu pai começaria, enfim, a desbotar-se naquelas tantas fotografias, até esvair-se de todo.
Assim consumado, tomei em minhas mãos os retratos e recortes de jornais que comigo trazia guardados dos bolsos, os quais e, de modo contumaz, me entregava a vislumbrá-los com um misto de dor e sofreguidão. Ninguém houve de censurar-me ou inquirir-me por aquilo que acabei de fazer.
Rasguei-os todos em pedacinhos e juntei-os sobre o peitoril da janela de meu quarto onde a seguir os queimei.
Ventava, e isso em muito me convinha. Num sopro, aliciei o vento para que carregasse com ele as minhas próprias cinzas.


© Alfredo Gonçalves de Lima Neto

sábado, 1 de janeiro de 2011

A Invenção da Segunda-feira

E ficou ali, miudinho, acocorado em sua humildade, fazendo luas com os dedos. Só depois, descobriu que era Deus. Como houvera criado a noite, não demorou a dar peso às pálpebras para justificar o sono. Quanto aos sonhos, como bem dissera, não fora criação sua. O Diabo, que negara com veemência qualquer responsabilidade no ofício dos pesadelos, culpou os homens pela criação dos mesmos.
Por seu turno e, como era aquele o sétimo dia desde o início da criação, Ele fora descansar. Segunda-feira acordou cedo e desejoso. Manhãzinha, junto com um resto de frio e as galinhas. A lenha sequer se vestira em fogo. Olhou nos escuros do mundo e bocejou. Há quem diga que era um esboço de preguiça, mas nem entre os que testemunharam aquele gesto se atreveu a tanto. Se ainda fosse uma virtude – disse de si para consigo, um certo tipo, esse, sim, um rascunho de bajulador. Mas Ele, que tudo ouvia – até pensamento e assombração – desprezaria a insinuação, preferindo retirar a remela que lhe grudava um dos olhos com a unha de um dos indicadores, enquanto matutava diante do descampado que, no lusco-fusco, se descortinava bem a sua frente.

Tomou uma decisão: criaria o ontem. Quanto ao amanhã, reservaria para as esperanças. Apegado que era às saudades, inventaria – mais adiante – um lugar onde guarda-las. Foi então que se lembrou que já o tinha inventado. Era o ontem.

Talvez por conta disto, o Diabo, que nos abeirados O espreitava, tenha amaldiçoado as segundas-feiras. E isso – como asseveraria o homem – haveria de ser a maior maldade atribuída a Satanás depois da sua invenção do arrependimento.



©Alfredo Gonçalves de Lima Neto